1.
A safada
era um vulcão brabo. E sabia das coisas.
Gostosa de
revirar a cabeça de qualquer gajo.
“Alemão” pensou que o Jordão era mesmo um
frouxo: marido manso lhe dava nos nervos.
O pomar
estava um breu. Uma coruja piou pertinho.
Sentado há
mais de meia hora no banco duro do trator, Vitor começou a inquietar-se.
Nisso,
alguns estalidos e o vôo repentino da coruja.
-
Demorei, “Lemão”?
-
Nada, vambora.
Dez minutos depois estavam debaixo da ponte. Ali era seguro e a relva, macia. Maria tentou falar alguma coisa, mas Vitor, faminto, não deixou. Foi logo levantando a saia, massageando as tetas duras, enchendo a boca de Maria com a língua sinuosa.
A
mulher deu um suspiro e foi se acendendo. Uma, duas, três vezes cavalgaram-se
às margens do rio.
Ainda
estavam enroscados quando, passando os dedos distraidamente pelo peito de
Vitor, Maria disse que achava aquela situação muito ruim e que ia parar de
encontrar-se com ele.
-
Que besteira é essa agora?
-
O Jordão já ta sabendo. Primeiro ficou que nem
cachorro molhado...
-
Cê contou pra ele?
-
...depois virou uma fera. Foi ontem. Me agarrou
e me deixou louca.
-
Foi você que contou pra ele?
-
Foi, ué. Ele nunca me deixou daquele jeito. Fiquei
molinha, depois.
Vitor
levantou-se abruptamente: - Sua vaca, filha duma puta!
E, mostrando o saco na cara de
Maria, vociferou: - Então é isso, é só isso que você quer, não é? Pois vem cá,
vem cá sua filha duma égua, que te mostro quem é que te deixa mole!
Assustada,
Maria escapou com um safanão das mãos de Vitor e, enquanto apanhava a blusa,
disse:
-
Para com isso, “Lemão” , ele é meu marido. Ce sabe
que não tava certo...
-
Tava certo, tava tudo certo, sim.
-
Tava não, “Lemão”.
-
Tô dizendo que tava. O Jordão é um puxa saco do
patrão. Macho que é macho não puxa saco pra conseguir favor. Tava certo;
merecia ser corno.
-
Ta falando do quê, “Lemão”? O Jordão tem estudo e é
por isso que o “Seu” Afonso pediu...
-
Uma ova! Eu sou o capataz, não sou? E sou bão. Se o
corno do teu marido não se metesse a besta, eu é que ia ser o cara pra cuidar
de tudo na fazenda. E sabe o que mais? Não me admiro se ele não te ofereceu pra
agradar o patrão. Eu vi como o “Seu” Afonso te olha, mulher.
Enfurecida,
Maria esbofeteou Vitor sem perceber.
-
Cala a boca, seu sujo, ce tá é verde de inveja!
Maria só percebeu a burrada quando Vitor, louco de
fúria, começou a surrá-la sem parar. Gritou e esperneou desesperada, pedindo
por socorro, mas, àquela hora da madrugada, ninguém poderia aparecer. Então, as
dores lacerantes nos seios pisoteados fizeram-na desmaiar.
Maria não
ouviu as trovoadas ao longe, nem viu a chuva cair mansamente sobre a relva.
Foi uma
semana de chuva fina.
Afonso
regozijava-se intimamente, apesar da tristeza de Jordão com o desaparecimento
da mulher: a safra desse ano ia ser muito boa.
Ano após
ano, conseguiu supersafras e enriqueceu como jamais esperara.
Jordão, sempre
calado, mas fiel, permaneceu com ele até a primavera.
Quando os
ipês floriram, disse que ia viajar um pouco: mesmo depois de dez anos, ainda
procurava por Maria.
2.
Caminhando
pela avenida, Jordão sabia que nunca fizera pouco da vida. Sempre soubera que
ela, a vida, pendia como machuchus nos cipós, pródigos e de graça. Por que,
então, importar-se? Tudo que todo sempre desejou foi ver com clareza – todos os
dias, a vida de frente.
Nunca houve
laços, lantejoulas, coisas pelas quais, antes ou depois de Maria. E,
distraidamente, contou os anos, caminhando pela avenida, tocando na pele áspera
dos machuchus: pródigos ainda, mas... o que teria velado o brilho da
gratuidade? O que cobrava, agora?
Estacou
defronte ao prédio alto, em vigas, vidro e concreto.
“Imponente
interferência humana”, Jordão diagnosticou mentalmente.
Depois do
mormaço das calçadas, o hall do prédio pareceu frio demais. Por isso, talvez,
não esperou pelo elevador. Não tinha pressa e suas pernas sabiam caminhar.
Pernas fortes, agora sabia, para aqueles degraus. Um passo sobre o outro,
dobrar o joelho, esticar, dobrar.
Sentia a
vista cansada. Parou um pouco, ajeitou os óculos e recomeçou a subida. Devagar,
o joelho saindo e entrando, compasso alternado.
Resfolegava:
era a nudez de Maria que galgava.
Lindíssima
de cabelos molhados, ela entrou em sua vida pela porta do carro num dia de chuva.
-
Moço, pelo amor de Deus, é meu irmão caçula. Tá
quase morto. Precisa dum médico, pelo amor de Deus, dá pro senhor levar a gente
até o pronto-socorro?
Maria de olhos assustados,
Maria afoita, Maria sempre viva. Maria decidida. Não esperou pela resposta;
colocou o garoto deitado no banco de trás e tentava reanimá-lo. Aspirava o ar
com força. Cobria a boca e o nariz do garoto com seus lábios, repetindo a
operação muitas e muitas vezes. Maria dos lábios vermelhos.
-
Anda logo, moço. Pé na tábua, senão ele morre.
Vamo, que é que tá esperando?
Jordão obedeceu
automaticamente. Ficou feliz quando ouviu um suspiro e a lamúria do garoto no
banco traseiro.
Só inteirou-se do ocorrido
depois que o garoto foi atendido no pronto-socorro da Santa Casa de
Misericórdia.
Rubinho – era como se chamava o
garoto – havia saído para pescar com mais três garotos. Como não chegava, Maria
resolvera sair à sua procura apesar da chuva forte de verão. Encontrara Rubinho desmaiado na beira do rio.
Tinha um ferimento na cabeça e estava de bruços. Com a chuva, o rio subira e,
de tempos em tempos, a água lambia seu rosto. Não havia tempo a perder. Maria
subira atè a ponte para conseguir
carona.
-
Foi sorte o senhor estar passando naquela hora.
Não ia dar tempo de voltar até a fazenda e pedir ajuda pro “Seu” Afonso.
Maria aliviada. Maria
agradecida.
Maria aos domingos.
Na soleira da porta, de pé,
Jordão observava Maria e Rubinho apanhando mangas. Elas brilhavam maduras no
meio da ramagem farta.
Pernas bonitas.
Sorrindo, ela achegou-se,
oferecendo um fruto, o leite ainda escorrendo pelo talo verde.
-
Manga “borbon”. É gostosa.
Jordão comeu com gosto. Depois, puxou-a pelo
ombro e, apontando para Rubinho, comentou:
-
Está totalmente recuperado, não é? Um belo
garoto, Maria.
-
Ta até rosado. Agora parece mais sadio do que
antes.
-
É... A vida brilha mais quando enfrenta o escuro
da morte.
Maria riu baixinho:
-
Ta falando que nem o Padre Francisco.
Levantou um olhar maroto e
completou:
-
É ele que casa os noivos, lá na capela da casa
grande.
Maria
corada. Maria dengosa. Maria de véu e grinalda.
Maria
cobiçada.
Uma
lâmina afiada machucaria menos.
O prédio era mais alto do que
imaginara: a metrópole descortinava-se por inteira, com seus ratos, formigas e
cupins roendo seus machuchus. Mesmo assim, não enfeitaria a morte.
Não
enfeitaria a morte – reafirmou-se Jordão, limpando os óculos – e veria a coisa
em si, a trajetória de um homem o que é.
Dirigiu-se
até o beiral e lá permaneceu por muito tempo, olhando para o vazio. A noite já
descia quando Jordão, como que saindo de um transe, pela primeira vez desde que
precisou de óculos, sentiu-se sem eles.
Retirou os óculos e, cuidadosamente, os depositou no chão, a seus pés.
Não
precisaria mais deles: agora sabia os machuchus décor, entranhados que estavam em si. E os levaria consigo,
para sempre.
3.
Afonso
teve muito trabalho naquele verão.
Vitor
seu novo administrador era incompetente. Afinal, não se podia mesmo esperar
muito de um ignorante como ele – pensou Afonso, dando de ombros.
Depois
do almoço, recostou-se na poltrona e acendeu um charuto. Ponderou que, de
qualquer forma, não valeria a pena contratar outro profissional: era capaz de
Jordão voltar, dia desses.
Ficou
observando a mulher Celina arranjar um vaso de flores. Eram rosas amarelas.
Celina gostava muito de rosas.
Sujeito
estranho, o Jordão. Rico, refinado, formado em direito, viajado, dava sempre a
impressão de que adivinhava pensamentos.Sabia... saberia... prever o futuro?
Seria por isso que nada abalava aquela serenidade?
Um
vento, um braseiro, uma espiga de milho ou uma supersafra... Jordão parecia
contabilizar numa mesma coluna de créditos.
Casou-se
com Maria. Aquilo sempre o fez lembrar-se de Pigmalião. Como era mesmo o nome
do professor celibatário? Higgins...isso mesmo, Henry Higgins. Lembrava-se que
Celina tinha gostado muito do filme.
O
casamento, até era compreensível, afinal Maria era adorável e sedutora. Mas vir
morar aqui, numa casinha de colono... um sujeito como ele?
Talvez
Jordão tivesse uma idéia muito diferente da perfeição feminina.
- As árvores não devem ser
transplantadas. – dissera ele com aquele sorriso peculiar.
É. Talvez Jordão
estivesse com a razão – ponderou Afonso, olhando para as rosas de Celina.
Sujeito
estranho, o Jordão.
-
...como fumaça...- murmurou, seguindo as evoluções da fumaça de seu charuto.
-
Disse alguma coisa?
-
Não, Celina. Vou andando. A fazenda já não é a mesma desde que Jordão se foi.
-
Andam dizendo coisas por aí. Afonso.
-
Coisas?
-
Sobre o Vitor. A Doralice diz que o Cícero anda preocupado. Parece que o homem
anda vendo coisas, bebendo muito.
-
Preciso dar um jeito nisso. Hoje falo com o
Vitor.
-
Cuidado Afonso. É um homem muito violento.
-
Tudo bem. Sei tratar com ele.
Já era de tardezinha quando Afonso conseguiu botar os olhos em Vitor:
bêbado, disse ter dormido a tarde toda no celeiro.
-
É aquela desgraçada, “Seu” Afonso. Não me dá
sossego.
-
Quem? A pinga, você quer dizer.
-
Verdade, “Seu” Afonso. É a Maria.
-
Maria?
-
Ela tá me perseguindo. De noite, de dia, não me
dá sossego.
-
A Maria do Jordão?
-
Aquela lambisgóia...acho que vai me matar.
- Aqui,Vitor. Vá tomar um banho e depois me
procure em casa. Preciso
falar com você, mas preciso que você esteja bem acordado.
Mas
Vitor não o procurou, nem mesmo depois do jantar.
No
dia seguinte, disposto a encontrá-lo para um acerto de contas final, Afonso
dava a partida no motor da camionete quando Cícero chegou, gritando que haviam
encontrado Vitor debaixo da ponte, morto sob as ferragens do trator.
4.
O trabalho do
corpo de bombeiros era lento.
Primeiro
retiraram o corpo de Vitor: não era coisa para ser vista por sujeitos de
estômago fraco. Mas foi quando o guindaste levantou o trator que Afonso sentiu
as pernas fraquejarem: enroscado nas ferragens subiu um corpo de mulher.
Rígido, parecia levitar sob a ação de um mágico, os panos da saia drapejando ao
vento.
As exclamações de
horror diante do corpo arroxeado e varrido de contusões escaparam quase em
uníssono:
-
Maria??!!
Como se tivesse
esperado apenas por aquele instante de reconhecimento, o corpo de Maria
encolheu, curvou-se no ar e, guinchando em agonia, desfez-se em fumaça,
precipitando-se em ossadas para dentro do rio novamente.
Encolhido de
cócoras, Afonso não se deu conta do tempo que levou para recompor-se. Quando se
levantou viu que o guindaste permanecia imóvel, cortando-lhe parcialmente a
visão do leito caudaloso do rio.
O agrupamento de
curiosos ainda permanecia em estado de choque: tudo havia se imobilizado sobre
a ponte. Apenas Rex, seu cão de guarda, abanava o rabo furiosamente para
espantar as vespas.
“Deus do céu,
isso não pode estar acontecendo.” – fantasiou enquanto, às apalpadelas,
procurava o lenço no bolso traseiro da calça.
Foi quando viu Jordão, também paralisado ao lado da porta entreaberta de
seu velho carro branco.
Na verdade queria
correr para perto do velho amigo, mas dirigiu-se lentamente até ele. Postou-se
de lado e esperou. Até que Jordão moveu-se e colocou uma mão sobre seu ombro,
pressionando levemente.
Afonso virou-se
para o amigo e perguntou por perguntar:
-
Você viu?
Jordão fez que
sim com a cabeça, sem desviar os olhos do guindaste.
Aos poucos, a
azáfama na ponte recomeçou: as pessoas agitavam-se, num burburinho perplexo.
- Eu..., sei lá por que, sabia
que você ia voltar. Estou muito feliz em te rever.
Jordão virou-se. Permaneceu em
silêncio por algum tempo e, deixando aflorar aquele peculiar sorriso
enigmático, declarou:
- Descobri que a ausência é
como a lua nova: os machuchus não brilham, mas estão la´... sabe?
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