Nunca me
disseram que se precisa nascer duas vezes.
Quando
descobri, foi um espanto. Mas ainda não sei como se nasce pela segunda vez. É
verdade que isto me incomoda – ter que nascer outra vez – mas vou adiando o meu
nascimento o mais que posso.
Já servi o
exército: um dia o sargento me deixou nu. Punição boba por eu ter descido a
escadaria pelo corrimão.
Já casei:
um dia papai me deu casa, carro, futuro. O que me incomodou foi ter que arranjar
uma noiva rapidamente. Punição mais boba por eu ter querido subir a escadaria
pelos degraus.
Já sou
pai: não há jeito de me esquecer disso. Minha mulher me diz, a toda hora, que a
minha filha é milha filha também. Aliás, foi quando minha filha nasceu que me
dei conta: um dia vou precisar nascer-me.
Não achei
o nascimento de minha filha aquele acontecimento maravilhoso que as revistas
especializadas recomendam que achemos quando ficamos pais. Não chorei; não
gargalhei. Apenas emudeci: minha filha nasceu chorando.
Ora,
aquilo me decepcionou: então eu lhe dou vida e ela tem o rompante de não se
alegrar com a vida?
Desde
então, tudo que tenho feito é mostrar-lhe o quanto a vida é boa. Não suporto
vê-la chorar porque me faz lembrar da decepção que foi vê-la chorar, logo
quando nascia.
Eu me acho
um sujeito afortunado; não tenho ambições para além do que já possuo. A não ser
o fato de eu ter que nascer de novo, nada incomoda a rotina pacífica de meus
dias.
Talvez as
formigas. É verdade. As formigas me incomodam às vezes.
Elas estão
por toda parte. Posso mesmo dizer que elas já fazem parte da minha vida.
Caminham desenvoltas pela mesa da cozinha, pelas bordas dos copos sujos, pelas
manchas do carpete da sala.
Já jurei a
mim mesmo que no dia em que as formigas, literalmente, tomarem de assalto a
minha casa, vou intimar minha mulher a fazer a limpeza diariamente. Mas, por
enquanto, vou adiando o ultimato – ou eu ou as formigas – porque acho bom
adiar: enquanto se adia, nem minha mulher, nem as formigas, desconfiam de minha
secreta alegria de sonhar-me livre da preguiça de minha mulher e, portanto, das
formigas.
Há, é claro, o inconveniente de não se resolver o
problema de ter pesadelos à noite. Hoje, por exemplo, despertei aterrorizado:
sonhei que eu estava sendo devorado por milhares de formigas pretas. Enormes.
Quanto mais me devoravam, menos dor eu sentia.
Até que, de repente, descobri: o cadáver totalmente
corroído pelas formigas não era o meu.
Era o de meu pai.
Só então senti uma dor no peito. Dor de enlouquecer.
E chorei, e chorei, e chorei, feito um
recém-nascido.
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Olá! Gostei muito do seu blog! Estou fazendo uma pesquisa na área de literatura e mídias digitais e gostaria de algumas sugestões suas sobre esse tema. Como promover o letramento literário dos meus alunos usando o blog?
ResponderExcluirAbraços.
Edineide