segunda-feira, 14 de maio de 2012

A GUERRA DOS ARCANJOS


Série

A Guerra dos Arcanjos.

De Akemi Waki para os que acreditam na Humanidade. 


PRÓLOGO

O GRANDE ARQUITETO E SENHOR DE TODAS AS COISAS, a partir de quando terminou a sua obra, acomodou-se em seu Arco que a Tudo Vê para observar o crescimento do Universo e de seus Viventes com muito zelo e interesse.
Permanece neutro diante das refregas entre Arcanjos e Demônios que se chocam em violentos combates desde tempos imemoriais. Os Arcanjos são seus prepostos de poder pleno para aplicar as Leis que se criaram junto com todas as coisas.
O Grande Arquiteto não criou os Demônios.
No corpo universal, demônios são males autoimunes, criação e fruto das mazelas da infância espiritual dos Viventes em todos os quadrantes das Suas muitas Moradas.
 Por bilhões de bilhões de anos, o Grande Arquiteto nunca precisou mover dedo sequer porque, durante todo este quase infinito tempo, nada houve que incomodasse a ordem das coisas por milionésimo de milímetro que fosse. As estrelas e os seres viventes nasceram, cresceram e morreram para nascerem novamente inumeráveis vezes, sem interferir no equilíbrio meticulosamente calculado, que é, assim como o livre arbítrio, a essência da própria justiça divina.
 Entretanto, há 2 milhões de anos, uma pequena ruga na curvatura do tempo próximo do Planeta Azul fez com que Ele levantasse a sobrancelha direita. A ruga, pequena, mas suficientemente ameaçadora, brilhava na fronteira entre o Primeiro Cinturão Astral e o Prisma Tridimensional do Espelho Vital.
Então conferiu as curvas das dimensões que envolvem o Planeta Azul até a sétima dimensão que alcança Júpiter, mas nada encontrou.
A sétima dimensão, mais conhecida como o Sétimo Círculo, se estende por ampla região entre Io e Ganimedes, os dois mais conhecidos satélites de Júpiter.
Textos bíblicos dão notícias de um “Sétimo Céu” como o melhor dos paraísos. Em verdade, a sétima dimensão é a morada preferencial dos Arcanjos que protegem todas as humanidades que vivem nas 6 dimensões anteriores, embora, quase sempre, estejam a cumprir missões por todos os quadrantes da Via Láctea. 
    No Sétimo Círculo a natureza exuberante é banhada de etérea luz cristalina. As metrópoles têm gigantescos prédios, altíssimos, pontiagudos e esbeltos. O casario harmoniza-se com tufos de vegetação verde claro, bosques, fontes e jardins floridos. E em meio à paisagem de exuberante vegetação se destacam imensos prédios piramidais, onde funcionam os vários departamentos da administração governamental.
Tudo é bonito, refletindo o estágio evolutivo dos seres que lá vivem – comprovando a tese de que o astral dos ambientes é totalmente influenciado pelas emissões fluídicas e emanações do pensamento dos que frequentam ou moram no local.
Em verdade, o “sétimo céu” reflete o semblante dos Arcanjos, na alegria de amar e servir – uma felicidade ainda incompreensível para a maioria dos viventes no Prisma Tridimensional do planeta azul e, certamente, para os estacionados no Primeiro Cinturão.
Os Arcanjos atingiram formidável e impressionante grau evolutivo. Já transcenderam a lei do nascimento físico e não precisam mais renascer no mundo tridimensional a não ser que desejem fazê-lo por misericórdia, para cumprir alguma missão de relevante importância e em obediência a planejamentos da dimensão astral do mundo espiritual superior.  Eles têm total conhecimento das leis naturais, estão livres de vínculos com as ilusões e necessidades da vida material, descobriram o altruísmo há muito tempo e mantêm-se sintonizados com os níveis superiores da Consciência Cósmica que advém da Vontade Suprema. Estão purificados e próximos da fonte da Vida.
O Grande Arquiteto não se preocupou com as dimensões seguintes – do oitavo ao décimo primeiro – porque a curva do tempo só se esgarça pelo princípio da incerteza aplicado ao dom do livre arbítrio.  Naquelas dimensões, acima da sétima, a progressão se faz geometricamente em função de um fator fixo que é o Amor Incondicional. Para Entidades incorporadas à luz do Amor Uno não há decisões melhores do que as tomadas pelo Arquiteto no início dos tempos.
Chamaria os Encanadores para estancar o vazamento de luz, em operação paliativa, mas precisaria empreender um programa educativo de longo prazo para neutralizar a energia autoimune causadora da ruga.  
Convocou o Governador do Setor 10 da Via Láctea, mostrou-lhe a ruga e recomendou medidas educativas para o PL8VLS10, colônia de Ainda Sem Nomes, que pareciam ter opiniões próprias em demasia, mesmo na fase larvar de formação e desenvolvimento do instinto básico.
     O Arquiteto lançou rápida olhadela para o incipiente brilho na dobra fronteiriça e pensou que, no contexto, não gostava nem um pouco da palavra básico. Enrugou a testa por um milésimo de segundo, enquanto avaliava probabilidades.
Resolveu pagar para ver, desfez a ruga da testa e reacomodou-se no seu Arco, em zelo pelas humanidades.

LIVRO I
GHIDEON DAS ESTRELAS.


PLANETA ZAPHYRION, SISTEMA DE VALIANTA.
Ano Estelar 37.640 – CPGA.

1.
GHIDEON
perscrutou o céu e teve a confirmação de que uma tormenta se formava rapidamente. E era das grandes! A pele de crocodilo, embora grande e sem furos, podia não ser suficiente para proteger o Fogo.
Precisavam, depressa, encontrar abrigo.
A chuva era o maior inimigo do Guardião do Fogo. Quando somada aos ventos fortes de um temporal, principalmente num campo aberto, eram poucas as chances de conseguir proteger o Fogo em seu braseiro de barro.  
Ghideon sabia que pouco podia fazer, caso o temporal desabasse sobre o bando naquele descampado em que se encontrava. Agarrou a longa alça do braseiro com mais força. Sentiu as pernas fraquejarem. As dores nos pés pareciam aumentar a cada passo.
Havia sangue nos seus tornozelos por causa dos arranhões e cortes provocados por pedras ou espinhos. Mas isso não era privilégio só seu: há meses caminhavam sem que encontrassem um local que motivasse o chefe do bando nômade a parar para estabelecerem-se por um tempo. Todos, homens, mulheres e crianças, estavam machucados.
Ao sentir a primeira gota bater com força na sua testa, Ghideon chamou Haggar e Donga, seus auxiliares:
- Peguem uma haste, rápido!
Haggar e Donga correram para perto de Ghideon. Colocaram-se, Donga atrás de Haggar, cada um segurando uma ponta da haste, que não passava de um forte galho de árvore, seco e livre das folhas. Ghideon amarrou a alça do braseiro bem no meio da haste e tentou cobrir o Fogo com a pele de crocodilo.  Para seu desespero, o vento o impedia de manter a proteção firme sobre o braseiro.
As grandes folhas de palma também não paravam sobre o braseiro. Ainda que parassem, Ghideon sabia que em poucos minutos o calor do braseiro esturricaria a palma, obrigando-o a substituir por outra. Conferiu sua trouxa: o estoque de palmas estava baixo e podia contar só com mais duas peles de crocodilo.
O temporal veio rápido. O céu despejou água impiedosamente e, em pouco tempo, a terra virou um charco.  Então Ghideon desistiu da haste e revezou-se com Haggar e Donga no trabalho de segurar o quente braseiro embrulhado por folhas de palma e pele de crocodilo. 
Os três tinham muitas marcas de antigas queimaduras nas mãos. Essas marcas atestavam o heroísmo dos Guardiões do Fogo. O bando nômade valorizava os Guardiões porque o Fogo era sagrado e não podiam sobreviver por muito tempo sem ele. Por isso, os Guardiões do Fogo eram tratados com grande deferência e mimados com muitos privilégios. Só o Feiticeiro Cyfron e o Chefe Jamal tinham mais privilégios que o Guardião do Fogo. 
Apesar dos privilégios – como comer antes que todos, ter a companhia de mulheres todas as noites, de vez em quando ser consultado pelo chefe Jamal em suas decisões -  Ghideon achava-se irremediavelmente infeliz.
Desde sempre se lembra de estar envolto na irritante névoa de Zaphyrion, o planeta amarelo.
Arrependia-se de alguma coisa enevoada no mais íntimo de sua alma. Fora iludido. Caíra numa armadilha, feito animal obtuso!
Mas, o quê teria sido? Como? E, acima de tudo, do que se tratava?
Tudo parecia soterrado debaixo da espessa névoa que cobria suas lembranças. Ele, que sempre gostara de caminhar segundo decisões tomadas na clareza de seu raciocínio sem zonas de meia luz, vivia uma vida inútil e sem propósito! Tudo por causa dessa névoa.
Já se sentia velho ao contar 7 vezes o seu dia de nascimento. Agora que conta 17 vezes, acordar de manhã e arrastar-se para fora dessa névoa que assola seus sonhos todas as noites tinha se transformado em suplício.
Em verdade, um suplício bem pior que o trabalho de guardar o Fogo, que, afinal era um desafio. E Ghideon gostava de desafios.  
A tormenta não dava mostras de arrefecer. O chão encharcado tornara-se escorregadio.
Ghideon entregou o braseiro para Donga e gritou:
- Reveze com o Haggar! Tive uma idéia. Vou falar com Jamal. Já volto!
Donga meneou a cabeça, encolhendo-se e olhando de soslaio para o céu que se riscava com inúmeros relâmpagos e ribombava ameaçadoramente.  Mulheres e crianças paravam para se aconchegarem, a cada vez que o céu trovejava.
Ghideon correu até Jamal. Segurou-o pelo braço, obrigando-o a parar.  Quando ficaram frente a frente Ghideon gritou:
- Estamos encrencados, Jamal. Não estamos conseguindo salvar o Fogo. Precisamos parar.
- Parar? Ficou louco, Ghideon? Como vamos parar nesse meio de nada e debaixo dessa enxurrada louca?
Dito isto, Jamal recomeçou a caminhar.
Correndo atrás dele, Ghideon continuou a gritar:
- Mas precisamos!  Olha, vamos parar ali, perto daquele rochedo.  Precisamos salvar o braseiro das enxurradas, do vento e da chuva, Jamal. 
- Esse é o teu trabalho, Ghideon! Não me aborreça com seus problemas.
- Preciso da tua tenda! Preciso que pare!
- Senão...?
- Ficaremos sem Fogo! Já perdemos mais da metade do braseiro.
Jamal fez um sinal para Cyfron, confabulou com ele e, depois de pensar um pouco, decidiu:
- Tudo bem. Vamos parar. Pode levar a tenda.
Ghideon procurou por  Zuwomi o carregador dos pertences de Jamal. Surdo, mudo, zarolho e resignado, Zuwomi, vergando-se  sob o peso da carga, caminhava a passos arrastados logo atrás dos caçadores.
Ghideon correu até ele e segurou-o pelo braço. Assustado Zuwomi virou-se. Ghideon pegou a tenda, gesticulou, explicando que Jamal tinha autorizado e correu de volta, à procura de seus auxiliares. 
Quando os avistou sentiu um sobressalto no peito: alguma coisa estava errada. Juntamente com Haggar, dezenas de homens do bando formavam um círculo em torno de Donga, que choramingava ajoelhado no chão encharcado. A maioria deles usava um saiote de fibras de palma trançados. Alguns tinham saiotes feitos com pedaços de pele de crocodilo.  Nenhum deles tinha a pele de um crocodilo inteiro cobrindo o corpo como os Guardiões. 
Empurrando os homens, que, de ombros caídos, murmuravam seus medos e preocupações, Ghideon alcançou o meio do círculo. Donga chorava de joelhos ao lado do braseiro tombado no meio do charco. Nenhuma brasa se salvara! 
- Pe...perdão, Senhor, eu...eu escorreguei.
Ghideon caiu de joelhos, agarrado nas hastes fechadas da pequena tenda de Jamal. O que fazer agora? Nunca passara por isso. Por que não pensara antes numa tenda para proteger o Fogo em cima de uma pedra?
Passariam a noite ao relento úmido e não teriam fogueiras para aquecê-los ou afugentar as feras selvagens. Não teriam fogo para fazer os cozidos. Pior, não teria desculpas para a ira de Jamal!
Levantou o rosto para receber a chuva diretamente. Viu o céu ficar claro quando um raio desceu, bifurcando-se. 
Ghideon levantou-se resoluto, colocou a tenda fechada sobre o ombro e, apontando na direção dos raios, gritou:
- Haggar! Vamos buscar aquele Fogo!
Virou-se para Donga e ralhou:
- Donga, pare de choramingar e venha junto! Precisamos encontrar aquele Fogo, antes que se apague!
Partiram em desabalada carreira na direção do local da queda do raio. Não sabiam se alguma árvore fora atingida, mas tinham que tentar. Torciam, quase rezavam, para encontrar uma árvore em chamas. Ou fumegando que fosse... E poderiam cavar alguma brasa. Seria a salvação, sementinha para uma grande fogueira! 
Ghideon corria, incitando os auxiliares. Seus olhos brilhavam, animados pela esperança.  Nem se importava com os espinhos machucando seus pés.  Ao avistar um aglomerado de árvores, Ghideon teve mais esperanças e seus passos ficaram menos penosos.
As árvores estavam bem mais longe do que parecera a princípio. Já não conseguiam mais correr por causa do cansaço e, quando, enfim, alcançaram um bosque, estavam cambaleantes.  A tentação era de se deitar e descansar para sempre, mas Ghideon estava determinado:
- Donga, procure pela direita; Haggar, pela esquerda! Vou adiante.
 Ghideon, varrendo o território com seus olhos atentos, seguiu pelo bosque, adentrando uma mata que logo se abriu para a margem de um rio de águas turbulentas. Atento, Ghideon percebeu que as águas despencavam de uma cachoeira larga, rio acima.  
Caminhou com cuidado pela margem para ver a cachoeira de perto.
“Bem como desconfiei, uma caverna!”
Olhou à volta, perscrutando a paisagem detalhadamente. Agachado, percebeu a quantidade de pedriscos e pedrinhas arredondadas que cobriam as margens do rio.
Sorriu, satisfeito.
Levantou-se, girou nos calcanhares e empreendeu a volta, gritando pelos seus ajudantes.  Pela violência da chuva e pelo tempo que levaram para chegar até lá, já não havia esperança de encontrar a semente do Fogo. Mas encontrara um lugar perfeito para o bando acampar por muito tempo!

2.
JAMAL
fumegava. Os olhos faiscavam a ira da frustração.
Com os braços cruzados, estava sentado sobre o rochedo que seu Guardião tinha apontado.
“Derrubar o Fogo! Era só o que faltava!”
Aguardava a volta de Ghideon, apreensivo, oscilando entre a raiva e a esperança. Seu bando estava cansado e faminto. Já começava a dar mostras de insatisfação e revolta.
Duas jovens de pele bronzeada tentavam protegê-lo da chuva, estendendo uma pele de crocodilo por cima da cabeça de Jamal.
Cyfron se aproximou.
- Deves castigar os desastrados para aplacar a revolta da turba. Terão a vingança e isso vai acalmá-los.
Jamal, em silencio, fuzilou Cyfron com um olhar tenebroso. Virou-se para as jovens e gritou:
- Deixa isso! De nada adianta! Saiam daquí!
As jovens desceram do rochedo, frustradas. Uma delas tinha enormes e meigos olhos. Ficou entristecida com a grosseria do chefe, mas permaneceu perto de Jamal. A água escorria por entre seus seios, rijos por causa do frio.
Kira ignorou o olhar malicioso de Cyfron e achegou-se mais de Jamal. Queria aplacar a sua ira para que ele poupasse ao menos o Guardião-chefe. Levantou os meigos olhos para o céu e viu que o temporal se aplacava, a chuva amainando aos poucos.
- Jamal... A chuva está parando. Logo teremos o sol para nos aquecer!
Mal humorado, Jamal puxou Kira pelo braço, posicionando-a para uma cópula e disse:
- Por que vocês não me dizem algo que não sei?
Kira aceitou o coito passivamente, esperando que isso acalmasse Jamal. Percebeu o olhar cheio de cobiça e dor de Cyfron, mas ignorou, afugentando pensamentos agourentos como se fossem moscas varejeiras.
Perscrutando o descampado na direção tomada por Ghideon, Kira viu os Guardiões. Não passavam de pontinhos no fundo do descampado, mas Kira reconheceria as passadas e os movimentos do chefe dos Guardiões mesmo a quilômetros de distância.
Cutucou Jamal e apontou para os três caminhantes.
Cyfron adiantou-se e disse:
- Ah! Já era hora! 
Subiram no rochedo e estreitaram os olhos. 
A chuva estiara de vez. Um sol tímido iluminava o ar úmido e frio. Além da névoa, Ghideon e seus auxiliares vinham caminhando em passos vigorosos.
Esperançosa, Kira comentou:
- Parecem animados! Tomara que tenham achado o Fogo.
- Huumm... Não vejo nenhum deles segurando o braseiro! – Cyfron falou num tom de voz tão agourento quanto feliz ao constatar o insucesso da empreitada, que Kira precisou afastar-se dele para não lhe cuspir na cara.
Quando o Guardião chegou com seus auxiliares, todos viram que ele não trazia a semente do Fogo.
Um semicírculo fechado formou-se rapidamente em torno do confronto entre Jamal e Ghideon.  Cyfron posicionou-se logo atrás de Jamal.
Kira temia por Ghideon e não conseguia acalmar seu íntimo. Então, foi para perto de sua mãe, a quem adorava e em quem confiava sem questionamentos. Apaixonada, Kira estava disposta a implorar pela vida de Ghideon se fosse preciso e faria qualquer coisa para aplacar a fúria de Jamal.
- Mãm, acha que... O Jamal não pode condená-lo... A chuva... a chuva foi muita, ele nada podia...
- Shii....Shiii...
Sua mãe passou o braço por sobre os ombros de Kira,  incitando a calar-se e acalmar-se.
- Mas, Mãm... Você é a conselheira. Podia...
- Shii... Escute.
Ghideon mantinha-se altivo diante de Jamal. Estava de pé, com as pernas afastadas, enquanto os seus auxiliares ajoelhavam-se sobre a perna esquerda.
- Sinto, Jamal, o temporal já tinha apagado a semente do Fogo. Entretanto, encontrei um local perfeito para acamparmos por um bom tempo. Tem água, peixes, caça e frutas, mas o melhor é que a caverna é grande e fica escondida atrás da cachoeira!
Um zumzumzum espalhou-se por todo o bando. Alegria e alívio: a dura jornada talvez terminasse aqui e agora. 
Kira mais que ninguém sentiu alívio: Ghideon estava salvo!
Jamal chamou Cyfron e Zaphyra, a mais velha das conselheiras, e caminhou para trás do rochedo, a salvo do olhar da turba.  
 - É uma boa hora para descansarmos por um tempo. Cyfron, que dizem os deuses?
 Enquanto Cyfron, chacoalhando seus cocares e girando as dezoito contas presas por cipós na ponta de seu bastão, consultava seus deuses, Jamal encarou Zaphyra diretamente nos seus olhos incrivelmente parecidos com os de Kira e perguntou:
- Mãm Zaphyra, tens algo a dizer?
- É hora de parar. Vejo a caverna. É boa e sei que algo bom vai acontecer lá, esta noite.
- Mãm Zaphyra, nunca te enganaste...
Jamal olhou para o céu, suspirou e concluiu:
- Seja qual for a resposta dos deuses, vamos parar.
Nisso Cyfron, revirando os olhos, deu um grito assustador e desabou no chão.  Jamal fez um sinal para dois caçadores que estavam mais próximos.  Eles acorreram para socorrer Cyfron, que logo se recuperou e disse em alto e bom som:
- Os deuses aconselham-nos a conhecer o local antes de tomar qualquer decisão!
Ghideon revirou os olhos, virou-se para Haggar e murmurou entre dentes:  
- É claro!
Haggar riu e comemorou, socando o braço de Ghideon e dando um empurrão em Donda. Então, Ghideon percebeu a aproximação de Kira – a preferida de Jamal. Baixou os olhos e fez questão de se lembrar que ela era também a cobiçada de Cyfron...
Enquanto agradecia com discrição aos cumprimentos de Kira, Ghideon percebeu que o zumzumzum do bando transformara-se em gritos de alegria e animação. 
Assim, a caminhada até o rio foi animada.
À frente de todos, Ghideon manteve-se discreto, próximo de Jamal, Kira, Cyfron e Zaphyra. Ao chegarem ao local – que agora, sem o temporal, parecia ainda melhor para Ghideon – hurros de alegria surgiram espontaneamente do meio da turba.
Os deuses de Cyfron tiveram a sua resposta.

3.
GHIDEON
sentia frio.
Incomodava-se com o fato de todos estarem tremendo por não terem uma fogueira.
Não queria amontoar-se como fazia a maioria para se aquecer e, de vez em quando, esfregava seus braços e pernas.
Franziu o cenho quando se deu conta de que esfregar de fato esquentava a região esfregada.
Tentou manter o quase pensamento que vislumbrou como a um relâmpago e começou a se esfregar agoniadamente porque o vislumbre insistia em desaparecer lá do fundo de seu cérebro.
Levantou-se angustiado e andou em círculos por um tempo sem se importar com o olhar preocupado de Haggar e Donga, e sem perceber que Kira também o observava de longe.
Sentou-se de cócoras, novamente. Massageou a nuca endurecida pelo frio. Esfregou seu braço direito. Fechou os olhos e, então, se lembrou!
Levantou-se e correu para fora da caverna.
Quando Kira pensou em sair à sua procura, ele voltou sobraçando um punhado de pedras, folhas e galhos secos.
Fez um pequeno círculo com as pedras e espalhou as folhas e forquilhas secas dentro do círculo.
Sentou-se, esticando as pernas para fora do pequeno círculo, escolheu uma pedra de formato retangular e começou a esfregá-la nas folhas.  Quando uma folha se esfarelava, Ghideon pegava outra para esfregar, mas nada acontecia.
Meia hora depois, cansado de tanto esfregar a pedra nas folhas e nas forquilhas de madeira seca sem nenhum resultado, Ghideon descansou a mão que segurava a pedra na coxa da perna nua. Gritou de susto quando a parte inferior da pedra tocou a pele de sua coxa: a pedra estava quente!
Animado com isso, Ghideon repetiu e repetiu o gesto de esfregar a pedra nas forquilhas e folhas secas, mas sem resultados.  A atividade frenética de Ghideon chamou a atenção de Haggar e de Donga. Eles se acercaram do chefe e ficaram de cócoras, atentos e curiosos a observar. Quando Ghideon deu mostras de cansaço, Haggar se ofereceu para continuar a esfregar.
Frustrado, Ghideon ficou brincando com as pedras enquanto Haggar esfregava a pedra sobre as folhas. Jogou duas pedras para o alto e ficou fazendo malabarismos com elas. Pegou uma terceira pedra e os seus movimentos de lançar e apanhar tornaram-se mais elaborados..
Quando Ghideon pegou uma quarta pedra, Donga estava encantado, acompanhando o malabarismo das mãos do seu chefe. Então, uma pedra escapou e bateu com força numa das pedras do pequeno círculo. Donga arregalou os olhos e apontando para a pedra, gaguejou:
- Che...chefe! Vo..vo...você vi.. viu?
- Viu o quê?
Donga apanhou uma pedra e a jogou com força sobre as outras. Apontou o local do choque, dizendo repetidamente:
- Faísca, chefe!  Fogo, chefe!
Pegou duas pedras e, rindo feito um idiota, ficou batendo uma pedra na outra.
Ghideon entendeu. Mandou Haggar parar de esfregar e amontoou os farelos de folha bem no meio do pequeno círculo de pedras.
Ficou de cócoras e começou a bater uma pedra na outra, com força. Percebeu faíscas. Aproximou as pedras das folhas e conseguiu que faíscas alcançassem as folhas.
A princípio pareceu que era apenas fumaça. Então Ghideon viu uma folha brilhar em brasa e apagar-se.  Soprou com sofreguidão, colocando mais folhas por cima da fumaça e, quando as viu em brasa foi colocando forquilhas secas.
- Donga, Haggar! Tragam galhos secos. Madeira! Rápido!
Seus auxiliares saíram em desabalada carreira, chamando a atenção de todos. Dez minutos depois, havia uma fogueira no meio da caverna.  Entre hurras e gritos de alegria, os tambores rufaram ritmos vigorosos para que todos dançassem em volta do fogo.
Era o ano estelar 37.640, mas em Zaphyrion aquele foi o ano primeiro, o da Domesticação do Fogo.

ENTRERRIOS – O BERÇO DO PODER.

    4. 
JAMAL chamou Ghideon e não Cyfron para a excursão de reconhecimento.
    A guarnição era pequena: Baelor, liderando 7 guerreiros armados de lanças de carvalho negro, Ghideon com seus apetrechos de fazer fogo, e Kian, meio-irmão de Kira, com seu arco e flecha. Jamal também levava arco e flechas a tiracolo, além de uma lança.
    Depois de receber os bons augúrios de proteção da Mãm Zaphyra, partiram de manhãzinha, ainda com as luas alaranjadas a meio caminho do poente.
    Seguiram rio acima pela margem esquerda: a idéia era caminhar por 3 dias em direção à nascente e voltar, esquadrinhando uma área de 1 dia de caminhada mata adentro,  indo e voltando, sempre tendo o rio como referência.
    Depois de meses caminhando a esmo por terras congeladas e, depois, por descampados desérticos, era um refrigério sentir o frescor e o aroma de uma floresta subtropical. Jamal respirava a plenos pulmões: o ar estava frio e úmido ainda que as flores multicoloridas da relva anunciassem a plena primavera.
    Uma brisa suave orquestrava os sons da floresta: sobrepondo-se ao som das águas correntes, pios e grasnidos de pássaros, mugidos e o martelar dos pica-paus. De vez em quando, rugidos, relinchos e, até, o rastejar de enormes cobras sobre as folhas caídas.
A terra escura, formada pelo húmus das folhas apodrecidas, parecia fértil. 
No terceiro dia perceberam a água do rio muito gelada. Depois de algumas horas de subida cansativa, viram placas de gelo boiando na correnteza – era o degelo, confirmando a chegada da primavera também no topo da serra, onde estava a nascente do rio.
Jamal aproximou-se de Ghideon e, apontando o leito do rio, anunciou:
- Vamos chamá-lo Rio do Fogo.
- Sim; um nome para jamais esquecer onde aconteceu.
A nascente, no topo da serra, era um fio grosso de água, mas outra nascente brotava próxima e logo abaixo da nascente do Rio do Fogo. Resolveram margear pela direita o outro rio, que chamaram Rio Irmão. A princípio, os rios corriam quase paralelamente até toparem com um monte de formação rochosa. Então os rios se separaram, abrindo-se e descendo em cascatas, espraiando-se em águas rasas, largas e límpidas, revelando um leito granítico e, por vezes, vítreo.
O sol se punha, pintando um poente alaranjado.
Jamal levantou o braço direito, sinalizando que iam parar.
Ghideon percebeu uma formação de grutas acima das cascatas. Quando entrou, pássaros assustados levantaram vôo, grasnando ruidosamente. O chão da gruta estava nojento, mas poderiam passar a noite à salvo de animais ferozes. Ajeitou seus apetrechos de fogo e saiu em busca de madeira, galhos e folhas secas. Baelor, solidário, acompanhou-o na busca. Era um guerreiro de poucas palavras, forte e valente. Disse, laconicamente:
- Grande idéia, fazer Fogo.
- É, foi mesmo.
Ghideon também era de poucas palavras, mas sentiu vontade de por para fora o que vinha pensando nos últimos dias.
- Agora podemos fazer fogo sempre que quisermos. Sabe o que significa?
Baelor balançou a cabeça e sorriu, esperando que Ghideon explicasse.
- Significa que podemos ficar aqui, entre o Rio do Fogo e o Rio Irmão para sempre. Não precisamos mais fugir do frio nem procurar por sementes de fogo. Podemos morar aqui para sempre!
O guerreiro deu mostras de não entender o entusiasmo de Ghideon.
- Não é tão ruim caminhar, é?
- Não, mas não podemos construir nem plantar. Como nômades, nunca teremos as coisas de que gostamos.
- Plantar?
Ghideon apontou para o chão, onde mudas de fruta-pão brotavam tímidas.
- Sim, olha aqui: podemos plantar perto da caverna para ter sempre à mão! Não só isso, mas todas as frutas de que gostamos.
- Bão, se você acha é porque deve ser bom. Por que não fala com o Jamal?
- Vou falar, mas antes preciso pensar em tudo.
- Ah, está bom.  Ei, Ghideon, esse galho serve?
- Está um pouco verde, sabe, faz muita fumaça, mas vamos levar e esperar que seque, antes de usar.
Já tinham recolhido galhos o suficiente para uma boa fogueira. Voltaram para a gruta, sobraçando a lenha.
Guardaram silencio por todo o trajeto, pois Ghideon crepitava de idéias e manteve-se quieto, concentrado em seus pensamentos.
Baelor, depois de duas tentativas, desistiu de conversar e respeitou o recolhimento de Ghideon, que sempre lhe pareceu um sujeito diferente e solitário, apesar de amável. 

    5. 
GHIDEON acordou sobressaltado: pareceu-lhe que despencava das nuvens para se esborrachar nas margens do Rio do Fogo. E, mais uma vez foi assaltado por aquela sensação de perda. Um temor úmido de não poder enxergar alguma coisa vital que se escondia no meio de uma névoa pesada, fria e impenetrável.
Virou-se e tentou dormir de novo, mas a velha sensação de urgência e desassossego não o abandonava. Inquieto, levantou-se, acordando a mulher que dormia agarrada a ele. Fez-lhe sinal para que voltasse a dormir e saiu da caverna.
A noite estava clara, iluminada pelas duas luas alaranjadas que se refletiam balouçantes na superfície do rio. Olhou para o céu e pode divisar muitas estrelas, apesar da claridade das luas.
Ficou assim, quieto, olhando para o alto, perdido na melancolia e na angústia de desejar algo que nem sabia o que era. 
Lágrimas quentes rolaram pelas faces. Envergonhado, limpou as lágrimas com o dorso da mão. Nunca soube lidar com essa saudade inexplicável. Mas sua mente lógica dizia que só poderia ser de algo bom já que a sua falta o fazia sofrer tanto assim. 
Acalmou-se com o toque suave da brisa noturna no rosto e nos longos cabelos castanhos que se agitavam suavemente. 
Pensou em voltar para a caverna, mas sentiu uma resistência maior do que costumava ter: depois de sentir o toque agradável da brisa noturna, pareceu repugnante  voltar àquele ambiente saturado de odores de corpos sujos e amontoados, misturado com o cheiro de dejetos, caças, comida e hálitos podres.
Desejou ter uma caverna própria.
E, então, a névoa sumiu. Lembrou claramente de uma coisa que viu em sonho. Na verdade, parecia que tinha alguém mostrando a ele, mas isso não lhe pareceu importante.
Esperou pelo amanhecer com impaciência.
Quando, enfim, Jamal saiu da caverna, Ghideon acercou-se dele com um graveto na mão.
- Tive uma ideia e preciso que permitas convocar Baelor e alguns guerreiros para me ajudar por uns tempos.
- Os guerreiros precisam guardar a caverna e o nosso território.
- Apenas Baelor e mais três. Preciso deles porque são fortes. Vou levar Donga e Haggar, também.
- Do que se trata?
Ghideon limpou o chão com os pés, livrando-o de folhas e pedras. Acocorou-se, fazendo sinal para Jamal também agachar-se e começou a riscar o chão com o graveto.
Ghideon desenhou um mapa tosco, com indicações do rio, da caverna, do bosque e da floresta.
- Jamal, temos tudo isso só para nós. Não precisamos viver amontoados dentro da caverna.
Indicando o local do bosque, Ghideon continuou:
- Podemos fazer tendas aqui. Todos podem ter uma tenda para dormir e se abrigar do sol e da chuva.
 Apagou o mapa com os pés e riscou um quadrado no chão.
- O interior de cada tenda... ahn...morada, teria no centro um buraco para o fogo e forquilhas para dependurar a caça e os cozidos.  Dependendo do tamanho, pode ter um lugar para guardar caças, comida e água. Um lugar cheio de folhas de palma e palha para dormir.  A sua morada poderia ter um lugar só para as suas mulheres e um lugar para ouvir os pedidos do bando...
Enquanto falava, Ghideon desenhava no chão o que via dentro de sua cabeça. A aparência da morada era um simples cubo com uma abertura como porta de entrada.
Jamal franziu o cenho. Era um sujeito impaciente, violento e destemido. Liderava o bando há quase 10 anos, desde quando, aos 14 anos, matou Golan em luta justa por Kira. Ghideon o respeitava porque, apesar da natureza violenta, Jamal era um líder nato e inteligente que sabia ouvir e avaliar com imparcialidade.
Foi com um meio sorriso no canto da boca que Jamal respondeu:
- Quer saber? Já estava farto da caverna. Pensava em partir, só para mudar de ares.
Pensou um pouco e disse:
- Pode levar Baelor. Ele escolhe os outros. Mas faça a minha...., hum..., morada primeiro.
Era a primeira vez que Jamal tomava uma decisão sem consultar Cyfron.
Ghideon sorriu, feliz.
- Obrigado, Jamal. Vou começar o trabalho agora mesmo.
Esperou Jamal caminhar ao encontro de Kira e Zaphyra que caminhavam pela margem do rio e girou nos calcanhares. Caminhou a largas passadas à procura de Haggar e Baelor: sentia a adrenalina percorrendo por todo o seu corpo. Queria entrar em ação o mais rápido possível.
Partiu rio acima no mesmo dia, seguido por Haggar, Donga e Baelor, que chamou dois de seus mais valentes guerreiros. Fortes e acostumados a longas caminhadas chegaram ao topo da serra em poucos dias.
Ghideon parou no exato local em que os rios se bifurcam e apontou para o vítreo leito do rio e para a profusão de sílex e rochas duras meio vitrificadas, legado do vulcão adormecido no alto da serra. 
  - Vamos carregar o máximo que pudermos até a caverna.
Haggar, como de costume, quis saber para que seu chefe queria pedras.
- Para fazer armas e para cortar muitas árvores.
Fez sinal para todos chegarem perto dele e perguntou:
- Por que precisamos viver  amontoados dentro de cavernas se podemos fazer nossas moradas? Pra que caminhar longas distancias para caçar e colher frutas se podemos criar e plantar perto de nossas moradas?
Caçadores e guardadores do Fogo entreolharam-se como quem pede socorro. Moradas? Plantar, criar? Do que é que o Guardião está falando? Ninguém quis bancar o bobo e ficaram quietos, balançando a cabeça lateralmente e levantando os ombros, como quem diz “E daí? Qual é o problema?” 
Baelor, meio titubeante, foi o primeiro a falar.
- Não é tão ruim caminhar, Ghideon. Também acho bom ficarmos juntos dentro da caverna.
- Sim, e acho que quase todos pensam assim, mas pode ser muito melhor, sabe?
Ghideon procurou uma pedra com aparência mais mole e dirigiu-se para perto de uma grande pedra. Fez sinal para todos se aproximarem e, desenhando, explicou todo o seu plano, do mesmo jeito que o fez para Jamal. Quando terminou, todos balançavam a cabeça afirmativamente, com um brilho novo no olhar.
Mas Haggar queria saber mais:
- E quanto a... Como é mesmo? Plantar e criar?
-  Ah, isso vai ser para as mulheres.
Ghideon respondeu sorrindo, mas deixando claro que o assunto estava encerrado. Virou-se para Donga e apontando para a caverna em que se abrigaram durante a expedição de reconhecimento e recomendou:
- Donga, faça o fogo desta noite naquela caverna e depois venha se juntar a nós. Vamos coletar o máximo de pedras e sílex.   
- Se queres cortar árvores, a pedra precisa ser afiada, Ghideon. Precisamos procurar com calma.
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