AKEMI WAKI
ALDEIA DE
ARCOZELO
(Para
Paschoal Carlos Magno, in memoriam.)
Toda poesia é um ato
de assombro. De espanto diante da beleza do universo, de terror diante do
sofrimento humano. É esta dialética - emoção diante da beleza, indignação
diante da dor humana – que nutre o ato poético, elevando-o à altura de ato
filosófico, subtraindo-o da mera condição de expressão sentimental. O autêntico
poeta é um ser crucificado na angústia de pensar antes de ser embalado no
encanto de sentir.
Franklin
de Oliveira
I .
à margem
úmida estou no rio
entanto vejo
córrego de
acontecimentos.
1.
Na vida, só tenho uma tristeza:
não sou cientista.
Invejo-lhes o conhecimento que travaram
com nêutrons, elétrons, prótons
e outros espécimes,
que vivem no bojo de átomos.
Se fosse cientista, diria
"Prazer em conhecê-lo, Sr. Próton.",
esbarraria no
menino Elétron em
órbita,
aceitaria um
cafezinho
e extasiada
ouviria a melodia das esferas.
De modo algum confessaria o intento
mas o que desejo
mesmo é saber
quem rege esta orquestra.
Se madrugada foi mesmo inventada
pra ser escutada
antes do esplendor
ou se está em mim a
sinfonia
violácea mutação de cores.
Mestres, através de
arautos incautos,
mandaram dizer-me que ouviram
A melodia das
espécies
a harmonia das esferas.
E que por todos os
segmentos
do infinito por
eles palmilhado
havia homens bêbados vergando-se
sob o peso do sono.
Mas que bobagem a
minha pensar
que bêbados zoeiram
dentro de mim
e que a tessitura
do universo
alonga seus
milagres ate meu ser!
Que bobagem a minha
dizer
: vossas feridas,
meu pus e sangue.
Na vida, só tenho
uma tristeza:
ser poeta.
Com fios de seda
tecer incógnitas
e milagres.
2.
Por vezes, tenho um
cansaço
: ser míope.
Ainda que o avanço
da ótica
me dê tudo
aumentado em aros,
minhas retinas
cansadas esquecem-se
de inverter as
imagens do mundo.
E da cidade grande
a vida
só conheço pelas
fotos.
Grandes revistas
mostram
pessoas e letras
garrafais.
Nunca o comprimento
das saias
a espessura dos
saltos
:bazar de miudezas
. onde costuro
minha vida.
Por ser míope,
as vezes meus
passos caem
num tapete macio
demais.
E encharco-me do
temor úmido
de nunca enxergar
as grandes
revoluções do mundo.
3.
A iminência de guerras
os golpes, os mexericos da vizinha
nunca saem do ar. Notícias,
ainda que manchetes, ecoam distantes
abafadas pelo tilintar dos talheres
e o choro da caçula esperneante
com uma espinha de peixe na goela
: a maior ocorrência do dia.
Nem todo dia Danton proferiu-se
mas nem todo dia um espinho nos fere.
Dez de agosto teria sido um dia qualquer
não fosse a fome maior naquele dia comum
: atiraram uma pedra n'água
e o homem faminto atrás de peixe
foi engolido pela primeira onda.
Grande é a fome das ondas sucessivas.
Maior e mais escura aquela
que engoliu Danton
(ainda com a pedra na mão).
4.
Vejo vazio o ventre do universo
e o mundo órfão na tribuna. Vem
do cativeiro o poder das algemas,
o temer, o saber apontar o réu.
Coube a mulher a ousadia do erro,
os ciclos, as rugas no ventre.
Nas ruas, plantada pedir perdão
com olhos no chão da esquina.
Ao homem, coube lavar as mãos.
Coube o cutelo, a cega
cumplicidade com os sonhos do herói.
Coube-me a miopia. Ambíguas
palavras. Permanecente certeza
de que algo se perde ante meus olhos.
5.
Por vezes
recorto jornais e guardo
como quem
guarda relembranças.
Espio fotos
antigas e dedilho esperanças
onde ha redes e
rendas tecidas por aranhas.
Lisos campos,
terrenos baldios, cimento
sem fim, céu de
estrelas. Por léguas
caminho.
Procuro
reconhecer
entre juncos a face perdida.
O que
permanece, por vezes procuro
demais na rota
das índias, nos lírios,
na onipresença
de Cristo, nos arquivos.
: a vida
implícita em tantos espelhos.
Os pássaros
sempre inauguram as manhãs.
0 aroma do café
com leite, os jornais,
as buzinas, os
guichês, os elevadores.
:a permanência
implícita
no pipilar da
cidade. Se sorrio,
meus dentes são
alegres.
Pelo
iencantamento da memória redonda
num universo
plano:
à revelia me
chamo Giordano.
Giordano Bruno.
6.
Sou
dessas que precisam sofrer
um
acidente, de repente.
Branco
e preto
num
cenario de cores
viva
continuo
trespassada
pela
espada dos pelejadores.
À
sombra dos mitos sobrevivo
de
sonho e adivinhação
:o
gigante mede 8 mil pés,
A julgar pelo mindinho..
Já
o mundo,
encolhe
a cada dia
sob
o silvo de bombardeios.
E
ressinto-me da miopia.
7.
Ai , as coisas pequenas! Sem vê-las,
vida sovina seu brilho de sonho.
Ébrio,
como meu jeito cômodo
de cochilar
e abrir meio olho
para o brilho da lua na face da água.
Percorrer dedos por lombos de livros.
Espreitar nuvens na memória. Relâmpagos.
Folhear atlas em busca de Atlantes:
Ébrio sonho de
sobriedade.
O saber se esconde atrás do sono,
um ciclo sem bocejos. Mas temo
pelo limite e as muitas muralhas.
Por nossa brincadeira de construir
II.
além do recuo
regulamentar
ficam a rua
e o quintal
do planeta
1.
Gira girando planeta girassol
:globo de plástico
pousado na mesa do estudante.
Fria geografia na ponta do lápis.
Gira girando
planeta girândola
:globo estático
espoca clarões poucos
nos livros de História.
2.
Há quase
400 anos, e ainda arde
fogueira sob os pés de Giordano
:estátua fria no Campo Dei
Fiori.
Estranha arquitetura,
são de bronze
os clarões do planeta
e de espelho as razões porque
se apagam.
Bem mais que
400 anos e esta manhã
é a mesma de fevereiro no corpo de Bruno
ou ·de setembro em Amsterdam no ano que vem.
Vida virando História no planeta
: tanto gira quanto
soma
manhãs e tardes
subtraídas ao tempo.
Estranha aritmética do cotidiano,
O que resta é lâmina
fria esta manhã de domingo
desembocando no mormaço da
tarde.
3.
Domingo. Nenhuma
fábrica apita.
Na cara do relógio,
nenhuma agulha
:meu corpo queima.
Corpos queimam
neste espaço cavado
no ócio do tempo.
Há vozerios no bar
da esquina
zunindo alegres
dentes zumbis
abrindo boca de
noite na zoeira.
Há fuligem no eixo
da terra
girando noites e
dias
as voltas com a
própria poeira.
Há uma gosma no
meio da tarde
:cospem, cospem e
cospem
a vida junto com
caroços
palito colarinho de
chope.
Nenhuma náusea
queima tanto.
Ácido é saber
que também deste
lixo me sirvo
:verme bicho imagem
e tudo
como os bêbados do
bar.
Contudo, saber e
meu único clarão
:irrompe no mormaço
da tarde
ilumina a cara da
esperança
- uma goiabeira
rompe o asfalto!
4.
Pé de árvore esperança
nu vens do céu: alegria
pernas pro ar. O sol nasce
invertebrado hoje. E cresce.
Raquítica tortuosa arfante
árvore invertebrada.
Entre o muro e o trânsito de
passos
a tudo que cospem carrega. Em vão
de cimento, vive: na tarde quebreira
uma goiabeira
como missa matinal de
domingo.
Nenhuma fábrica apita.
Mínima goiabeira repica
- sinos -
à tarde, minha manhã de
domingo.
5.
Domingo. O planeta gira com-
passo perneta:
inda ontem comia goiabas no
pé
hoje fedem na fruteira ao meio dia.
Fedem como o suor do garfado
e o bafo dos que jantam bem.
Fedem como as tripas do peixe
depois da feira. Fedem
sangue de caça na pá dos
tratores.
Domingo. Depois do asfalto
a planície abre-se ralada
: silêncio de tratores
curvando antenas
- pavana por uma paisagem
morta.
Domingo. Depois do sorvete
o reino é da criança
: tem fila no balanço mijo na
areia.
Em grama não se pisa
e na floresta
quem manda é Tarzan.
6.
Domingo. O ócio fermenta
o grito no fundo da goela
o bote da fera no meio da
selva.
Domingo de pedra. O ódio fermenta
estratégias de guerra fumaças
tambores nos quartéis do planeta.
Nenhum despertador à vista
:
gravatas descansam no respaldo
fomes prostituem-se à mesa.
À sombra dos mitos de Arcozelo
dormem os homens sem bravatas.
Nenhum despertador se vê
: no
reino de palanques moedas pedigrees
há fragatas naufrágio encrencas
medalhas bravatas trombetas.
Até as gravatas dos homens
que dormem
estão no tablado desta guerra.
(Um épico na tevê rufa
tambores em surdina.)
7.
Dentro
da selva e das feras, dentro
dos tratores gravatas pedras.
Dentro do asfalto e das feras
meu
coração ainda bate, selvagem.
Dentre bandeiras porteiras quartéis
e chaminés de fábrica ardendo olho
meu coração ainda canta, teimoso
:
uma goiabeira cresce no olho da rua.
Hino
algum canta como meu coração
nem alcança tais ermos
onde
tratores e governos nem cabem
: tudo são cristais no corpo da terra
e
se não quebra em cacos o coração
nem se mói a goiabeira
é
que algo mais antigo existe
traçado em sonho e sopro
de
antiquíssimo pai.
Dentro
do sopro e da semente, dentro
do coração e dos colhões
um
sonho ainda vive, goiabeira.
III.
lua nova
é como se
chama
a ausência
1.
Se uma goiabeira
persiste
sei que deveria sonhar
clandestina alegria
de roubar ao
zelo do Sonhador
a ramagem de seus sonhos.
Mas não. Há
algo de vermelho no ar
e um mecânico gesto de formigueiro.
Há algo de escuro na goiabeira
e um falso
gesto de ribalta.
Mímica de
inconsciente urubu
sonhando
aéreo ataque de
águia sem fome.
Sombra de grande e veloz pássaro
rastejando
por sobre
campos e desertos.
Assim a goiabeira,
assim o homem.
2.
No verde milênio
de incontidas auroras
nosso senhor
leva o nome máquina.
No escuro silêncio
de embutidas sementes
nossa ramagem
perde a inocência.
Acesos em brilho
não o da claridade
mas o do verde-azul
da ira e do medo
Assim o homem,
assim a goiabeira.
3.
Em lugar de
harpas
celestiais
o aço das
farpas ouço.
E um pressentimento.
Velha,
velha árvore
somos nós.
Harpa intangida,
por que
caminhos circulamos?
Viciados ressequidos circulares
por onde caminhemos
a pira de
Prometeu ainda arde.
Narcisos florescem. No espelho
imagem sem limites.
Vulto envolto
em sonhos
assim o homem, assim a
goiabeira.
4.
Falhou o
Sonhador de Arcozelo
ou falham
lampejos de minha memória?
A História desfila tambores, agouros:
E nos muros da
memória esconde fomes,
matadouros. No eixo das idades
corpos
saboreiam corpos
bêbados bailam
balés nas avenidas
formigas depenam goiabeiras.
Todo o país
dorme
com as mãos no coldre
e os nervos no
despertador.
Pálpebras tremem
como panos ao
vento do deserto
: o medo não dorme.
Nem dorme a ira
de nossos tempos.
5.
Que inverno
vingou a semente no equívoco,
que sombras
velaram o brilho na lua cheia?
Com que violência, que respirares
impedimos a seqüência do interlúdio?
Que pincéis
avermelharam o rosado,
que brins
endureceram o veludo?
Seria hora de
compor elegias
úmidas pranteadas
as carpideiras
espargindo seus ais.
Mas é que meus ais brado
com a ira dos
amorosos
sem o zelo do
conquistador
nem o medo do
usurpador.
Na iminência de
mortes
intuída
mostrarei ambas
as faces.
6.
o gesto meu e o
do crucificado
será a aleluia dos alados?
As marcas de
meu rosto
nem alegre nem triste.
Esfinge, na superficie.
Nem vencida nem
vencedora,
esfinge.
Nem águia nem urubu,
esfinge em vôo.
E a morte com
seus esgares
espreita sentada no trono.
7.
A este medo
este garfar
rasos territórios
chamamos vida.
(onde os
mistérios, larga ramagem
galhos abertos, polpa madura?)
A este
encolher-se
este petrificar-se
em espera
chamamos vida.
(onde a
liberdade, vôo de busca
mergulhos no mar, azul claridade?)
IV.
gaiola
desvairada medição
de um pedaço do infinito
1.
Longa é a
espera na solidão de fruto
enjaulado no aspecto das raízes.
De junhos a
agostos demora. E nada
no ar reverbera senão as unhas
: cavo que cavo
não há tesouros.
Júbilos poucos,
um som cavo de
dores sem choro.
Mas se bem procuro os veios
algo me diz que
seivas existem
suspensas no desenho da semente.
Longo é o sono
dos bêbados
e o êmbolo de
seus olhares soltos
até dentro de mim não alcança.
Mas se bem fecho
os olhos,
nada no ar
opõe-se a que chame
Deus ou Sonhador
a esse mar de
forças arbitrárias.
E se mais fecho os olhos
algo me diz que
mamutes existem
congelados nas paredes do Himalaia.
No átrio do
temp(l)o
no portal de
minhas cavernas
algo me diz que a vida espera.
Nua, sobre cetins, a vida espera.
2.
Olenka me
chamaria talvez
se não me chamasse assim.
E como Olenka viveria
talvez prazeirosa e fugaz.
Etérea,
marmórea. Sem perceber
os músculos da vigília.
Olenka me
chamaria.
E o mundo seria
menos vasto.
Meus olhos veriam menos
e os braços
disputariam espaços.
Como Olenka viveria
para morrer
rente ao corpo
e seus objetos.
3.
Olenka não me
chamo
e o mundo é
mais vasto.
Rente ao corpo
e seus obj etos
a vigília é pequena
: cidadãos e generais
frente ao
tablado de abjetas
conquistas. Medem músculos
e palmos de terra por números.
Sete é pouco, se debaixo,
para a
eternidade entre os vivos.
Olenka precisa ter inimigos
pátrias condados para defender.
Fileiras de soldados
muitos sonhos
para esquecer.
Olenka não me
chamo.
Olenka porta
bandeiras. Constrói
carroças e mais carroças
para filhos sem
parelhas.
Olenka não me
chamo.
Lúcida Olenka
descabelada,
que palita os dentes da morte.
4.
Olenka precisa
nascer
e começar a morrer.
Olenka não me
chamo. E clamo
e vos pergunto: a semente?
A semente foi-se
cuspida em nome
dos sábados?
Viventes de
Arcozelo. Goiabeira.
Vos pergunto: a semente?
A semente rolou
nas águas,
fez-se imitação?
Olenka não me
chamo. Reclamo
e vos pergunto: a vida?
A vida
foi abolida em
nome de Deus?
Rolou entre hóstias, fez-se dor,
negociação de alma,
prefácio da
morte?
5.
Viventes de
Arcozelo. Goiabeira.
E vós
que rente ao
som de passos incertos
é senão um corpo e uns medos.
Viventes de
Arcozelo. Goiabeira.
E vós que provais nos prazeres
o éden do
autofágico saber.
A vós, sombra.
Pássaro
domesticado,
esfinge sob as
asas da morte.
Não falo do mar
ancestral
nem da terra prenhe
há nove
milhares anos.
Falo do rol de emoções
do ar e do fogo das cores.
Falo do frescor da manhã
e das cinzas ao vento
quando a paixão amaina.
Porque isso é o homem
: antes e
depois da morte
o que
impermanece.
6.
Homem. Hiato. Interlúdio.
Se no escuro
buscais a lua cheia
e no corpo da
terra o que permanece.
Se no vão de
cimento, no ardor das juras,
no furor dos aviões a jato, nas recusas,
no atordoamento
dos vinhos, nestas palavras
tão palavras somente.
Se assim a
procurais,
não há exatidão
n-
o fio da vida. Rola neste rio
suspenso pela mão do hábil
artista de marionetes
propenso mais
às palmas e confetes
que ao destino de manter o fio tenso.
Se assim a
procurais,
nenhuma face é
seu leste
nenhum arado sulca seus oestes.
Mas se bem
fechardes os olhos,
vereis
apagar-se a Imagem de nossa imagem.
E nada no ar manifesta vingança
tamanha
por precisar de
nós a projetá-la.
7.
Na semente já
cresce nova semente
e não me perguntem se é o ovo
ou a galinha
quem vem primeiro.
Essa matemática, que dedilha
o primeiro e o
último, limita
o círculo do
vôo numa reta finita.
Essa lógica
cúmplice da claridade
vaza a alma, separa
o dia da noite,
a vida da morte.
Comigo, o
pensamento descontinua.
Desvia-se alonga-se embrenha-se.
Implode. Restam
uns
pressentimentos de continuidade.
Na galinha vejo o ovo
no ovo a galinha,
um galo novo,
galinhovo.
o tempo é
sempre.
Deus e Diabo
andam de banda
grudados pelos traseiros.
V.
não o éden.
um jardim
pequeno
onde abrir
minhas pétalas
1.
Como deusa, rescendendo
a jasmim,
por vezes subo às águas furtadas
e avisto o
mundo. Ao longe
casarios,
filhos, horizonte construído.
Deve ser assim,
ser Zeus
: avistar o épico,
as horizontais,
as manchas e marcas.
Mas nem só de
ovos postos
e um oposto se faz a vida
: o que reverbera aqui e ali não sei
se é espelho, se é ouro ou vidraça.
Dispo-me dos
jasmins e auréolas
e desço. Então
avisto a
estéril goiabeira
e é como se
reverberassem nela
minhas mirradas ramagens.
Magdalena antes
de santa, miosótis
esquecida num canto da rotina
e ressequida
meu nome será
Eva? Ainda
terei da serpente, o que muda,
refloresce?
2.
Um inverno inteiro de espera,
agonias
e o inferno de rasgar a pele,
por que, se tenho o frescor da
relva
sob meu ventre rastejante
e todo este veneno?
Há guichês no município
e moedas
pra meu dízimo de fé.
Lei nenhuma para as coisas
pequenas
clandestina alegria quintal farto
mexericas goiabas mangas
infância de porres saudades
que não cabem nas fotografias.
Substantivo feminino, a vida
sovina brilhos, interjeições.
Por isso direi
- como o dicionário -
que sou organismo
: viverei minha porção.
Enquanto dure, vida,
no espanto de ser
poro pêlo planta dos pés.
3.
domingo domingo
espreguiçoso domingo.
Arcozelo boceja. a vizinhança boceja.
os cães o
asfalto o capim tiririca
o sol as flores
no vaso. tudo boceja
ao derredor da goiabeira.
domingo sem
beiras se estende. no limbo
do corpo onde repouso, bêbados bocejam.
e o ócio de seus
lábios frouxos
não decifra
a linguagem de
meus nervos.
sequer adivinha o veio de lavas
ebulindo
excessos entre meus pentelhos.
ainda que entre
muros e relâmpagos
abram-se brechas na memória
(em espasmos de
sonho e crescimento
em espaços para sementes de goiabeiras)
tenho um sexo feminino
púbis pentelhos
negros
corpo sapiente
com tais luzes
tais sombras.
e a vida pulsa nestas partes
e nestas
como o mesmo
fragor que ondas.
4.
Aos domingos,
meu coração se atrasa:
raciocina amor
num corpo
nublado de cio.
E enquanto
sinos convocam
para o silêncio da comunhão,
desperta para os açúcares,
que escorrem
pelas bordas do mamão.
Aos domingos,
meu coração dispara:
no secreto açúcar do fruto por passar
equaciona
os segredos do
tempo talhando a vinha,
exalando frutos podres nos verões.
E enquanto
almas comungam
a paz prometida
no pão e no vinho,
ouve, não a quietude das comunhões
mas o agudo de cães disputando ossos.
Aos domingos
fico que só
: o coração descompassado batucando
mensagens, não de eucaristia
mas de dívidas
e dízimos. Vergo-me:
aos domingos, o mundo pesa mais.
5.
Não sabia tão
acre e doce o gosto da solidão'
nem que fosse por
todos caminhando o solitário
pêndulo do tempo.
Não sabia tão
frágil a comoção
nem que me
coubesse turbilhão de espelhos
retratando de todas o vento e o pêndulo.
Maria Dolores
Benedita Aparecida
Rosário de nomes em contas de vida
iguais. Tão diversos
os olhos, a
maçã de seus rostos,
entanto vejo a
repetição dos invertebrados.
o que inscreve
no tempo tais estórias
diversas como as opções do labirinto?
6.
Se à vida vim
para os crescimentos,
os trigais
repletos e maduros e curvados,
esse passo
incerto entre cais e mar, que
é?
É que pesa nomear-me como todas
- Eva-
e rasgar-lhes
rasgando-me a nudez.
Bela nudez,
como pôde vergar-nos tanto
no oficio de cobrir com rendas,
quinquilharias,
se é dela que
vem o saber
se é dela que nasce a vida? ,
É que pesa
acordar
e saber-se vida.
7.
Nem só de
raízes à mostra
se fazem caule e frutos
: é funda a raiz que suga
a seiva
o sonho do
Sonhador.
Ser deusa.
Descobrir de novo
o já sonhado
na imagem da
estéril goiabeira
e na miragem de nossa nudez.
Santa Madalena:
rogai por nós,
que em poucas águas nos
afogamos
esquecidas do mar,
filho de todas as águas
florescidas.
VI.
cada um incomum
sozinho
no comum caminho
1.
Traço gestual
de alma que pensa
e faz
a vida não fede
no submundo
nem brilha em jardins suspensos.
Arde
nuns limbos com
trejeitos
de céu de
inferno de cruz de espada.
E jaz
tudo sendo, um
nada
côncavo.
Tela em branco,
papel sem máculas
desafiando
as
cores do pintor, o silêncio do poeta.
2.
Com que cores
pintaria o ínfimo
espaço entre toque e não toque,
com que palavras diria o silêncio
ambíguo entre saber e não saber
o segredo do
equilíbrio?
Pergunto aos
cães e falam-me: ossos.
Pergunto aos
homens e falam-me: posses.
Pergunto às águias e falam-me: caças.
Pergunto ao
vento e uns ecos assoviam
o agudo das disputas: vencer.
E o planeta
dobra os joelhos.
3.
Tantas cabeças
na bandeja do Khan
tantas medalhas, bandeiras içadas
heróis, troféus no pódio, menções.
Tantos dentes
moídos em conspiração
tantas preces, saudades dos mortos
esperas, olhos acesos, resistência.
E a face
distraída do Sonhador.
4.
O que sustenta
a vida
essa
intermitência de vaga-
lume piscando no vácuo?
Como as mariposas
nunca
chegaremos a cortejar
luzes
e resistir ao
suicídio?
Pergunto aos
mares e bramem: lua.
Pergunto às nuvens e ribombam: água.
Pergunto às serras, planícies, montanhas
e gemem: semente.
Pergunto aos
homens
e bradam uns
ares de rei ungido.
5.
Voar amplo, vigiar o branco.
Buscar, no recôndito, a vigília
com que cores? Que dizeres
acenderão a face do Sonhador?
Sei de lamentos. Bêbados riem,
roem meu império: coração
maior que todo império de canhões.
De iras. Formigas depenam goiabeiras
de meu quintal: coração
maior que todas as bandeiras.
Pergunto-me e sei de esperanças.
Toda manhã recomeço asas
pra geográfico vôo por mares e rios
raças e povos
construí dos do mesmo pouco
de que me constituo coto.
Sei de esperanças e peço a centelha.
6.
Da História
escapam as coisas pequenas
mazelas
reflexo de lua
na face da água.
Tanto brilha a luz quanto é densa
a sombra que a sustenta: dois
que são um.
Alvorecer anoitecendo.
Se, feito loba
faminta, fico a uivar
e ouço uma criança chorar,
sei que chora
porque uma mãe existe
com o peito cheio: centelhas
que são um.
Fogo repartido.
Por isso, com a
licença de Donne,
não me digam que tratores constroem.
Por isso não me digam
que a goiabeira
crescendo no asfalto
é uma goiabeira crescendo no asfalto.
Asa vento vôo em
pouso,
sumo semente
verões em repouso,
aquele arvoredo sou eu e todos.
Parte do sonho. Viveiro,
rumor de
pássaros alvoroço da manhã.
7.
Na vasta vitrina de Arcozelo
meu coração se multiplica
: sendo arco ou sendo zelo
uma mesma faísca percorre
flechas à revelia perfeitas.
Na pasta de estudos abrigo
Hermes Homero Heráclito de Éfeso
Genghis Khan Nazareno
: tudo flui na galeria de ilustres.
Fulgor de linhagem
contido no traço de mesmo sonho.
Platão ou Aristóteles
Hegel ou Heidegger
Corinthians ou Flamengo
: tudo são pelejas.
Na banda de lá, ou de cá,
alaridos de galera
cacarejando ovos antes da postura.
Antes que postura foi ovo.
Antes que ovo,galo.
Antes que galo foi sonho
e zelo do Sonhador de Arcozelo.
VII.
nadar
contra corrente
e parir: piracema.
peixes
morrem in aquarius.
1.
Sei de esperanças
e tenho a centelha.
Mas se de tanta esperança não mereça
ver o ouro das coisas erigir-se
atrás do escudo
de Arcozelo,
que aos menos
possa
engraxar os
sapatos do mundo.
E se de tanta
esperança não baste
descobrir, no podre, o ciclo da semente,
que ao menos me
baste
para espalhar
notícias do que permanece.
Sei de esperanças
e tenhoa centelha.
Mas se de tanta esperança houver
lamentos,
flauta doce a pairar sobre meus sonhos,
for dado sentar-me e esperar
feito um sapo de louça,
que se apague a centelha.
E que meu peito
murcho e morno seja.
Morto, como este domingo.
2.
Um corpo sem
gozo ou dor
coisa de louça, boneca sem cor,
ah, livra-me de ser.
As mazelas
de sozinha sofrer
o brilho das coisas,
a brisa nas folhas,
são meus
bezerros.
E bebem o ouro da cisterna.
Da mais funda
raiz sobe o canto,
do mais negrume nasce a razão .:
E todo meu
fausto em ouro e espanto.
Deixa-me sem
pétalas, perfume.
Arranca de mim a estética dos galhos, ,
o bordado das
folhas. Deixa-me ràsa,
as raízes
horizontais. Capim tiririca.
Mas não me tire o espanto que é viver
na flama teimosa da palavra recebida.
Verde capim
tiririca
o encanto da palavra.
3.
Palavras rondam
minhas noites,
assombrosos
murmúrios zumbem.
Vejo gente que
não conheço
e lhes conheço a dor, o medo
com seu horror. Espanta
esse vozerio dentro do peito
como se rio de
carpideiras murmurando
a dor, a dor, noites a fio,
Espanta: dentro
de mim há Espanha,
búfalos da América, lagos de Titicaca.
Há Nigéria, miséria, faces da moeda.
Gente que sobe
a rua, ou que desce:
Anônimos rostos
do continente.
Das águas
furtadas aos porões
prenho-me
mas quem
reparte, quem consola
dor inútil de ter uma flor na lapela?
4.
O quase do
milímetro, tão desmedido,
na distância
entre os bibelôs da cômoda,
quem reparte? Quem consola
o condomínio
povoado de abismos,
solidão de fruto
em ciclo de espera,
quem reparte?
Tantos espaços em gerúndio
enquanto vestígio de idéia, quem consola?
Saber-me velha
em rugas desde
o primeiro dia,
minhas
entranhas de tanto cansaço,
alugar ao lamento dos viventes à mercê?
Devo ter arado,
semeado
estirpe diversa
de furiosa semente
: minhas orações trovejam
cometa
rasgando tempo
e espaço.
Das águas
furtadas aos porões prenho-me
mas não direi dos cacos de todo dia
em comícios no
peitoril da água furtada ..
Direi de dentro
do mais mar de mim
entre netunos, sereias e ostras.
5.
Ao pé do
ouvido, diz Netuno
: Siga-me, e tereis o mar.
Empunha meu
cetro e mostra
os caminhos do poder. O altar
onde pedir minha brandura.'
Meus tridentes
não brandirei
enquanto houver oferenda.
E rodeando pela
esquerda
: Siga-me, e tereis do mar
a carne mais
nobre. Retira
de minhas águas
o dejeto.
Não deixe que
pouse adubo.
Transfigura o podre em rosa,
camarão rosado. Meus tridentes não
brandirei contra meus arautos.
Abutres também
voam, senhor.
Circular vôo.
6.
Mavioso canto
como o meu te console
em rimas e raras lantejoulas. Cante
aos audazes da marinha. O sonho, o-
mito. Mas recite canções de ninar,
o condor nos
escudos, os feitos,
a ternura de
Temugin antes de Khan.
Tantas vezes
lustre as escamas
como as de minha cauda deslizante
e de longe,
muito de longe do gentio,
diga canções de amor. Gentil acalanto.
O ouro das escamas reparta antes
que o sol se vá
com as brumas da noite.
Nenhuma agonia
haverá, prometo,
quando as brumas caírem sobre ti.
Nenhuma dor, ao
se apagarem teus pés
das praias de próximas ondas.
Insetos também
voam,
gentil sereia da morte.
E é raso seu vôo.
7.
Nos porões do
mar repouso
exilada de netunos e tubarões.
Camaleoa permaneço sobre pedras
e minha concha abro em saudades
para o ciclo da lua plena.
Se bocejo, minha concha ecoa
não o canto enganoso da sereia
mas o lamento de Arcozelo
um dia avistado
das águas furtadas.
Ostra me chamem
: meus
incômodos em pérolas desfio.
Na lama do mar
repouso
exilada de
domingos e sua gosma.
À dor
nunca me acostumo
e nada me
consola. Nos porões
do mar, nada reparte senão o pó
que levanto para mais ver.
Quem reparte,
quem consola
senão minhas próprias raízes
muitas, que me prendem à pedra?
Ostra me chamem
: o que me rói
se fará VERSO,
o avesso do UNO.
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